Depois de participar dos
festivais internacionais de cinema de Sundance, Berlim, Cartagena, Brasília e
São Paulo, o longa-metragem “Não Devore o Meu Coração”, dirigido por Felipe
Bragança e protagonizado por Cauã Reymond, chega aos cinemas de todo o país no
dia 23 de novembro.
O filme, cujo roteiro também foi escrito pelo diretor,
inspirado em contos de Joca Reiners Terron, foi rodado na cidade de Bela Vista
(MS), fronteira do Brasil com o Paraguai, e traz no elenco Leopoldo Pacheco,
Ney Matogrosso, Cláudia Assunção e Zahy Guajajara, além de um grupo de atores e
não-atores locais encontrados depois de anos de pesquisa na região. A produção
é da carioca Duas Mariola Filmes, em parceria com a Globo Filmes, Canal Brasil,
Mutuca Filmes, Revolver Amsterdam (Holanda) e Damned Films (França), com
distribuição no Brasil pela Tucuman/Fênix Filmes.
PRESS BOOK
NÃO DEVORE MEU CORAÇÃO!
(Don’t
swallow my heart, alligator girl!)
Drama-Aventura/ 108’/
Brasil-França-Holanda/2017
Livremente
inspirado em contos de Joca Reiners Terron
SINOPSE
Joca, um menino brasileiro de 13 anos, e Basano La Tatuada,
uma menina indígena paraguaia, vivem na fronteira entre os dois países. Joca
está apaixonado por Basano e busca fazer de tudo para conquistar seu amor,
mesmo que para isso ele tenha que enfrentar as violentas memórias da Guerra do
Paraguai e os segredos de seu irmão mais velho, Fernando (Cauã Reymond), um
misterioso agroboy envolvido com uma gangue de motociclistas da região.
Inspirado em contos de Joca Reiners Terron.
SOBRE
O FILME
Um dos mais sangrentos conflitos na
história das Américas, a
Guerra do Paraguay tinha por base a disputa pela Bacia do Prata e aconteceu
1864 e 1870. De um lado, a Tríplice Aliança, formada por Brasil, Uruguai e
Argentina; do outro, o pequeno Paraguay; no saldo, 300 mil mortos, entre civis
e militares, incluindo 20% da população do país derrotado. Herança maldita na
América Latina, a guerra é o pano de fundo de Não Devore Meu Coração!”,
novo longa-metragem do diretor carioca Felipe Bragança.
Em sua primeira incursão individual na direção
- após a parceria na função com Marina Meliande em A Fuga da Mulher
Gorila (2009) e A Alegria (2010) -, Bragança vai ao
Mato Grosso do Sul, na fronteira entre Brasil e Paraguay, para narrar uma
história de amor e violência emoldurado por paisagens naturais exuberantes e
misteriosas em meio a uma atmosfera de fábula e imaginação. A trama acompanha
Joca, garoto de 13 anos apaixonado por Basano La Tatuada, menina indígena do
Paraguay. Os dois, separados pelas águas do Rio Apa, vivem em meio à memória
sangrenta da guerra e às diferenças entre culturas e tradições. Joca mora com o
irmão mais velho, Fernando, motoqueiro agroboy que integra a Gangue do
Calendário. Aventureiro e sensível, Fernando é a imagem da juventude transviada
de um Brasil profundo, em busca de uma identidade em meio às chagas violentas
com grupos rivais.
Inspirado em contos do escritor
sul-matogrossense Joca Reiners Terron, Não Devore Meu Coração! navega
por margens literais e metafóricas de um conto adolescente de amadurecimento e
fortalecimento. O protagonista, alter ego de Terron, toma contato com novas
situações e novos afetos que o colocam no limite de um mundo de desilusões e
dores das mais distintas. O amor por Basano,
que encontra dificuldades de se concretizar, e a percepção de que Fernando tem
um caminho próprio a percorrer com seus companheiros de gangue, são os desafios
de Joca rumo à vida adulta e à consciência de que as complexidades do Brasil e
de suas heranças históricas extrapolam os bancos da escola.
Joca e Basano, liderando suas respectivas
turmas, vão fazer parte de uma pequena revolução prestes a eclodir na fronteira
Brasil-Paraguay.
NOTA
DO DIRETOR
Por Felipe Bragança
O sonho é a pele do cinema. É assim que me
aproximo dos temas e dos personagens que construo em Não Devore Meu
Coração. Esses fantasmas fronteiriços, sobrevivendo entre Brasil e
Paraguay, misturando memórias da guerra e afetos urgentes. A leitura dos contos
de Joca Terron me deu os ventos certos para embarcar nesta aventura de fazer o
meu primeiro longa solo, que filmei cinco anos depois de lançar A
Alegria em Cannes.
Por anos a fio passei a visitar a região, a
conhecer as cidades, a paisagem humana, o jeito de falar e imaginar desta parte
do país. Pensar o Brasil através de seus sonhos e pesadelos. Pensar o Brasil a
partir do que se esconde e o que se mostra nos afetos e desejos. A cultura
indígena guarani como realidade atual e como fantasma de um passado de culpa em
que o Estado brasileiro massacrou quase a totalidade da população paraguaya. A
cultura guarani como um sopro de energia e possibilidade de resistência em um
país ainda dominado pelas mesmas oligarquias centenárias. Os personagens, todos
à deriva na busca de alguma felicidade possível, buscam nesses fragmentos de
história e afetos passados, nortes para construírem seu presente e suas
identidades. Em uma terra onde a cultura machista é preponderante, as
personagens femininas para mim surgem como pequenos faróis também da esperança
de uma releitura do real: seja pela raiva, seja pela doçura, pela coragem, as
personagens femininas do filme trazem o questionamento à flor da pele.
Como um todo, são personagens que surgem do
chão daquela terra, e por isso a proposta desde o início de trabalhar com
atores locais (todos sem experiência alguma anterior) na construção dessa
fábula. Atores iniciantes encontrados pelas ruas das pequenas
cidades, pelos bares, nas estradas do Mato Grosso do Sul. Um elenco de grande
força cultural que veio se juntar aos nomes mais experientes do elenco, como
Cauã Reymond, grande parceiro criativo do filme e que vive um jovem deslocado e
carente de afeto, que cruza as estradas transformando tudo em desejo, raiva e
velocidade. Não foram poucos os jovens que eu encontrei na região com esse
espírito de desespero raivoso e melancólico. Não foram poucas as histórias que
eu ouvi de amor entre pessoas dos dois lados da fronteira e que se viam
confrontadas pelas diferenças culturais e pelas cicatrizes históricas. O que
procuramos fazer neste filme foi atravessarmos o imaginário dessas pessoas e
erigir uma fábula de amor, aventura, medo e coragem.
Instalar um lugar mágico onde os tempos se
misturam e se encontram é umas das missões mais
bonitas do cinema. Acreditar que por alguns momentos, no cinema, é possível
encontrar brechas na realidade conversadora e hostil em que o país está
mergulhado é também um gesto que procuramos cultivar. Dia a dia. Plano a
plano.
SOBRE
O DIRETOR
Felipe Bragança nasceu em 1980 no Rio de
Janeiro. Em parceria com Marina Meliande, dirigiu os curtas Por Dentro
de uma Gota D’água e O Nome dele (O Clóvis), além da
Trilogia Coração no Fogo, composta pelos longas-metragens A Fuga da
Mulher Gorila, lançado no Festival de Locarno 2009; A Alegria,
lançado na Quinzena dos Realizadores (Festival de Cannes 2010); e Desassossego
– Filme das Maravilhas, filme coletivo,
lançado no Festival de Rotterdam em 2011.
Em direção solo, fez o longa-metragem Não
Devore Meu Coração!, com estreia mundial na competição do Festival de
Sundance em 2017. O filme também foi exibido na competição da mostra Generation
(Berlinale) e no Festival de Toulouse, além de ter sido filme de encerramento
do Festival Internacional de Cinema Cartagena e de abertura no Festival de
Brasília.
Escreveu e dirigiu, entre 2003 e 2014, cinco
curtas-metragens, apresentados em mais de 50 festivais de cinema no exterior e
no Brasil, como Berlim, Oberhausen, Bienal de Sharjah, Cork, Tampere, Gramado,
Brasília e CINE PE. Escreveu e dirigiu a websérie de três episódios CLAUN,
exibida no Festival de Rotterdam 2013 e vendida para a TV Brasil e Canal
Brasil.
Como roteirista, escreveu os longas Girimunho (Helvécio
Marins Jr. e Clarissa Campolina), No Meu Lugar (Eduardo
Valente) e Heleno (José Henrique Fonseca), além da parceria
com Karim Aïnouz, de quem escreveu O Céu de Suely e Praia
do Futuro. Escreveu ainda o longa-metragem Mormaço, direção de
Marina Meliande, em fase de finalização.
Ganhou retrospectiva dos seus filmes no Museu
Jeu de Paume, em Paris 2012, e Kino Arsenal - Cinemateca de Berlim, em 2013. É
sócio-fundador da Duas Mariola Filmes, produtora baseada no Rio de Janeiro.
ENTREVISTAS
FELIPE BRAGANÇA
(Direção e roteiro)
O filme é inspirado em
contos do escritor Joca Reiners Terron e tem, também, muitos elementos
característicos de seus trabalhos anteriores, A Fuga da Mulher Gorila (2009)
e A Alegria (2010) (codirigidos com Marina Meliande). Qual foi
a gênese de Não Devore Meu Coração, seu primeiro filme como diretor
solo? Como chegou aos contos de Terron e em que medida eles serviram ao
universo estético e temático que você tem trabalhado no seu cinema?
Minhas ideias de cinema
passam pela paixão. Li os contos de Joca Terron logo após a exibição de A
Alegria em Cannes em 2010. Imediatamente fui tomado pela certeza de
que podiam ser transformados em um filme, entremeando elementos de diferentes
contos, especialmente dois deles que tratavam um de um amor adolescente, outro
de uma gangue de motoqueiros da região. Os contos de Joca traziam uma atmosfera
de fantasia e crueza, através dos fragmentos de sua adolescência na fronteira
do Brasil com o Paraguay, que me eram muito convidativos, misturando sonho e
crônica, amor louco juvenil e retrato social de uma realidade brasileira pouco
investigada pelo cinema. Todos os meus filmes se passam alguns centímetros
acima do chão, em um registro de sonho, de fábula, de embate através da
imaginação. Os contos de Joca eram um campo fértil para eu seguir esse caminho
através de um território que para mim era novo.
Você pensa o novo filme
como uma mudança de rumos ou paradigmas em relação a seus outros trabalhos,
inclusive como roteirista (como O Céu de Suely, No Meu
Lugar, Girimunho e Praia do Futuro)?
Não vejo mudanças de rumo.
Vejo depuração de questões e multiplicação de possibilidades. Como cineasta,
quero ter a liberdade de seguir muitos caminhos. Ser mais de um. A autoralidade
me interessa enquanto possibilidade de ir além de quem eu sou. Não como uma
delimitação de identidade. Sigo investigando sonhos. Desejos. A imaginação de
lugares e pessoas. Esse é o cinema que me interessa fazer. Todos os filmes e
seriados que fiz me habitam. Todos os filmes que eu ainda vou fazer também.
Não Devore Meu Coração! se ambienta na fronteira
Brasil-Paraguai e incorpora diversos elementos do imaginário de duas regiões e
duas populações de vivências e experiências bem distintas, entre elas a herança
maldita da Guerra do Paraguay. Como você desenvolveu a mistura de realismo e
fantasia, ou violência e poesia, que tanto fazem parte da atmosfera do filme?
Passei cinco anos viajando
para esta zona de fronteira e conversando com as pessoas da região. Ouvindo.
Sentindo o jeito delas organizarem seus mundos simbolicamente. Foi na mistura
desse encontro com as pessoas e o imaginário mágico dos contos de Joca Terron
que eu encontrei o filme. Ficou claro para mim que a memória da Guerra do
Paraguay ainda é uma ferida aberta, mal cicatrizada e escondida na identidade
do Brasil. Nossa maior guerra, um imenso massacre promovido pelo nosso exército
e a tomada de um território são vergonhas que o Brasil ainda esconde como um
pesadelo que não quer contar para ninguém. No fundo, tentei me instalar dentro
dos resquícios desse pesadelo e criar um filme mágico, denso, triste, mas que
no fundo procura algum encantamento naquela realidade tão dura, violenta e
esquecida no tempo.
O filme pode ser visto
como um romance de formação (na relação do garoto Joca com a Basano) tanto
quanto também um rito de passagem (nos desdobramentos da trama envolvendo o
motoqueiro Fernando), tendo ao mesmo tempo a desilusão de dois países que não
se reconciliam e também a possibilidade de outros rumos a partir do olhar de
novas gerações. Todo esse equilíbrio de conflitos e interações era algo já
previsto no roteiro? Como você, como artista, se deixou impregnar pela
atmosfera de um ambiente tão repleto de camadas como este por onde o filme
trafega?
A proposta era exatamente
trabalhar a ideia de atração e repulsa em diferentes escalas. Cinema é uma
questão de escala e ritmo. A intuição sempre foi a de procurar um filme que
misturasse todas essas camadas, da história e do afeto, do gesto épico e do
gesto mínimo, do banal cotidiano e do mágico. Basano e Joca, Brasil e Paraguay.
Um jogo de atração e repulsa, de medo e interesse, de vontade e futuro e peso
do passado. Fernando, o motoqueiro, é de alguma forma alguém que desistiu de
construir algo novo e se lança nessa espiral de violência e medo em uma busca
desesperada por um lugar no mundo. Joca, através do amor, quer reconstruir o
mundo a seu redor. Basano, pela coragem, acredita que pode mudar o futuro sem
deixar o passado desaparecer nas brumas do dia. São três formas de lidar com o
tempo. E no fundo esse é o embate último do cinema: um embate entre tempos
diferentes que se atravessam e se consomem.
Este é seu primeiro filme
multicultural, ou multinacional. Foi um grande desafio lidar com as
sensibilidades e singularidades de dois povos, de dois países, com um histórico
tão marcado pela violência e pela guerra?
Eu já tinha criado o
argumento e roteiro de Praia do Futuro, com o Karim Aïnouz, e
dirigido um curta em alemão e em dialetos africanos chamado Escape from
my eyes. Este filme, meu primeiro longa solo, de alguma forma continua esse
movimento de querer cruzar fronteiras políticas e geografias e pensar
contrastes, rimas, sobreposições temporais e encontrar esse território mágico
que é o próprio cinema. Além disso, escrevi roteiros que se passavam no Ceará e
no interior de Minas antes disso, e por lá me misturei e acumulei camadas de
identidade também. Nunca tive minha identidade artística aliada ao que já
conheço. Geralmente o que me faz criar é exatamente o desconhecido. Acabo de
rodar um longa novo, por exemplo, que se passa em três países de três
continentes.
Como foi seu trabalho com
o elenco, que tem desde jovens atores e atrizes (Eduardo Macedo e Adeli
Gonzales), um nome com experiência na televisão e no cinema (Cauã Reymond) e
uma figura icônica como Ney Matogrosso? Eles logo se ajustaram ao ritmo e ao
estilo do seu cinema? Houve algum trabalho prévio de preparação ou de leitura
ou mesmo de convivência e estudo?
Eu sempre ensaio muito tempo.
Com os chamados não-atores, há um processo longo de preparação física e de
comportamento, para a construção de uma partitura de movimentos que depois vai
ser usada na construção dos personagens e cenas. Com os atores mais
experientes, faço leituras, conversas, experimentos e parto para ensaios
intensos. Este processo procura fazer com que todos cheguem em pé de igualdade
no set: os atores mais experientes dialogando com os marinheiros de primeira
viagem. Uma grande atmosfera é criada no set, como se entrássemos em um
submarino nosso, onde somos donos do tempo e do espaço,
e todo o elenco divide essa pequena nave junto, cada um a seu modo, para
sairmos desse mergulho todos com a certeza de que criamos algo intenso e
especial.
Como foi mais esta parceria
entre você e Marina Meliande, que desta vez atuou exclusivamente na produção?
Marina atuou como uma
produtora criativa, pensando junto nos momentos de dúvida, de decisões finais
de elenco e montagem, por exemplo. Uma parceria que temos há mais de uma década
e que espero que ainda dure muitos anos.
A direção de fotografia de
Glauco Firpo equilibra as imagens mais poéticas e oníricas (especialmente nas
cenas com os adolescentes e o realismo mais “sujo” e frenético, como nas
sequências de moto ou de briga. Visualmente é um filme complexo, pois trafega
entre ambientes abertos e naturais que precisam ganhar tons muito distintos de
suas vocações "naturais". Como isso foi planejado e executado junto
com o Glauco?
Glauco Firpo é um fotógrafo
com uma qualidade especial: a de ter grande sensibilidade para a dramaturgia e
os sentidos das cenas. A partir dessa
sensibilidade, pensamos a luz, quadros e tempos das diferentes
cenas entre a tensão e a distensão, entre a melancolia e a urgência que marcam
aquele sentimento de mundo que buscávamos para o filme. Dos tempos mágicos e
coreografados inspirados em Hayao Miyazaki, passando pela raiva punk
rock dos filmes de Walter Hill, como The Warriors, ou
procurando a expressividade quase autônoma e fantasmática dos rostos do cinema
de Carl Dreyer. Eu dizia para o Glauco: tudo o que filmamos é real. Mas é uma
realidade suspensa, de cores saturadas, de escuridão densa, de sombras e
neblina. E ele teve grande habilidade para construir as luzes com a pequena
estrutura que tínhamos conosco na fronteira.
O filme é dividido em
quatro capítulos, delimitados por cartelas com títulos bem específicos. A
escolha pelos capítulos tem relação com o tom de fábula de Não Devore
Meu Coração? Como esses títulos se relacionam com os rumos que o filme vai
tomando a partir de cada capítulo?
As cartelas para mim
funcionam como capítulos de um romance de aventura. E demarcam a ideia
romantizada da narrativa enquanto uma fábula que procura, através do sonho,
construir sentidos e degraus de sensibilidade naquela realidade em que a
violência às vezes tira o sentido das coisas e
dos gestos. São como pequeninas pedras em um rio por onde saltamos procurando a
vida e os afetos dos personagens. E me ajudam a entender o mundo em que estou
me aventurando como narrador.
CAUÃ REYMOND
Ator e coprodutor
O Fernando é um jovem que
cuida da casa, nutre um profundo carinho pelo irmão mais novo, Joca, e tem
atitudes de um típico rebelde, de uma "juventude transviada" bastante
contemporânea e transnacional, ao circular pelos arredores da fronteira
Brasil-Paraguay. Considerando o seu trabalho de construção desse personagem,
como você caracteriza o Fernando e como trabalhou para chegar a esse tipo que é
visto na tela?
Eu diria que a composição do
Fernando é fruto de conversas com o diretor e análises das indicações
do roteiro. A partir daí deixei a intuição tomar conta. A prosódia também
ajudou muito nessa construção, pois tínhamos uma grande mistura de sotaques da
cultura local. O fato de estar num set de filmagem silencioso foi outro fator
importante. Costumo dizer que eu me concentro me desconcentrando. Não tenho o
hábito de fazer brincadeiras e falar bobagens antes das cenas.
Aquele é um momento de criação, portanto toda atenção é válida.
O universo do diretor
Felipe Bragança e da produtora Marina Meliande mistura a imaginação com o
realismo, ou a fantasia e poesia com a violência. Em Não Devore Meu
Coração!, essa mescla é potencializada, a partir dos escritos de Joca
Reiners Terron, pela presença de um imaginário fronteiriço que agrega elementos
também da cultura latina e indígena. Como você se relacionou com esse caldeirão
de referências e relações?
Tenho bastante admiração
pelos trabalhos anteriores do Felipe e da Marina, motivo pelo qual topei estar
nesse projeto com eles. O Felipe propôs uma dramaturgia clássica, e a história
do meu personagem ajuda a conduzir essa dramaturgia abrindo espaço para que os protagonistas jovens do filme
trabalhassem mais no universo da fábula e do lúdico. Essas características
fazem deste um filme bastante singular, do qual tenho muito orgulho de ter
participado como ator e coprodutor.
Você contracena com um
elenco muito jovem (em especial o Eduardo Macedo, como Joca) e com figuras de
distintas experiências, como Cláudia Assunção (no papel de Joana, mãe de Joca e
Fernando) e Ney Matogrosso (como o misterioso Mago), além de um núcleo variado
de atores e atrizes tanto do lado brasileiro quanto paraguaio na trama do
filme. Como foi a interação com esse elenco? Em que medida a sua experiência
ajudou a oxigenar o trabalho de colegas tanto quanto eles também oxigenaram a
sua atuação?
Pela primeira vez na carreira
eu me vi na condição de ser o mais experiente do elenco, tirando a sensacional
Claudia Assunção, com quem eu já tinha trabalhado em Avenida Brasil.
Quando me vi contracenando com essa galera jovem e intuitiva, percebi que eu
tinha que convidá-los a entrar naquele mundo de imaginação. Comecei a entender
os trejeitos e a forma de cada um trabalhar e rapidamente eles foram entrando
no jogo da imaginação. Sempre com o Felipe como maestro desta orquestra.
Nos últimos anos, você tem
se dividido entre cinema e TV, com trabalhos muito variados e personagens bem
característicos a cada meio. Seus métodos de trabalho também variam de um
ambiente a outro? Como você diferencia, no geral, um projeto como Não
Devore Seu Coração! e a participação numa novela de exibição diária e
regular?
Geralmente desenvolvo o
personagem de acordo com o que o projeto pede, sempre tentando entrar no clima
da equipe e assimilar a metodologia que a direção e meus colegas de trabalho
trazem. É um grande exercício me adequar à forma como as pessoas trabalham, e
isso me alimenta bastante como profissional. Me ajuda a não ficar viciado e a
não entrar no piloto automático.
DINA SALEM LEVY
Direção de arte
Quais foram os principais
desafios de fazer a direção de arte de uma história que se ambienta numa região
de fronteira (Brasil-Paraguay) e que se passa quase todo em ambientes abertos,
desde rios que dividem os países a estradas por onde trafega um grupo de
motoqueiros?
O primeiro maior desafio foi
conhecer Bela Vista e entender a cidade, as pessoas e um pouco da história da
região. Quando eu entrei no filme, o Felipe já conhecia a cidade como ninguém.
As locações já estavam em grande parte definidas. O desafio era me apropriar
daquela história, transformar os espaços, criando uma atmosfera onírica, mas
mantendo a identidade do lugar. Nesse filme, grande parte do meu processo foi
destrinchar os núcleos dos personagens com o Felipe. A gente discutia um por
um. Cada membro da gangue, cada criança... Eu diria que a arte partiu muito
disso, do conceito estético das gangues e do
núcleo infantil. A gente tinha isso bem claro e separado nas pranchas da arte.
E além disso tinha o lado paraguaio e o lado brasileiro, que também tinham suas
diferenças. Como o filme tinha muitas cenas externas, embaixo da ponte, nas
estradas, e a gente queria que o filme tivesse um conceito visual forte,
precisávamos trabalhar muito bem as ideias do figurino, das motos,
do capacete, para que conseguíssemos manter o tom que a gente queria, mesmo nas
externas. Os capacetes da Gangue do Calendário, poe exemplo, foram pensados um
a um, assim como cada moto foi adereçada de acordo com a personagem.
Não devore meu coração! se equilibra entre um certo tom
realista e uma atmosfera onírica ou de devaneio, como se o filme a todo tempo
fosse do naturalismo à poesia. Para o trabalho de direção de arte, em que essa
mistura afeta as escolhas e definições a serem feitas?
Eu acho que essa é a grande
graça de fazer arte num filme do Felipe. Por mais que permeie a realidade, ele
sempre busca fugir dela - seja nos diálogos, no próprio roteiro ou na concepção
artística. Tanto eu quanto ele achamos chato quando fica naturalista demais e
estamos sempre buscando criar essa atmosfera onírica. Primeiro a gente fez uma
leitura da cidade, das cores que tinham em Bela
Vista, dos materiais das casas. Era tudo muito
barro, madeira, terra vermelha. Queríamos incorporar esses elementos e entrar
com mais vida e com a nossa poesia. A partir daí, criamos um conceito para o
filme, em que assumíamos os elementos locais, e isso nos permitia exagerar nas
cores (no núcleo das gangues) e nos elementos
com brilho, luz. Nossas referências eram as gangues urbanas de Nova Yorkr, as
cores dos anos 80, o neon. As luzes fluorescentes, por exemplo, que são muito
usadas nos cenários, foi um elemento que fomos incorporando cada vez mais ao
longo do filme quando percebemos que a cidade só usava esse tipo de lâmpada. Eu
e Glauco Firpo, fotógrafo, trabalhamos muito juntos nessa parte da iluminação
dos cenários, que para mim era o grande lance da arte. Eu queria acender todos
os faróis das motos, criar um teto de lâmpadas
coloridas no clube da Gangue do Calendário. E o Glauco foi incorporando isso na
iluminação dele.
Como se deu a interação
com o diretor Felipe Bragança? Havia muitas conversas em relação a cada cena?
Vocês definiam alguns encaminhamentos juntos ou você já propunha a arte a
partir do roteiro?
O Felipe é um diretor muito
aberto a sugestões. Desde a minha primeira leitura do roteiro, começamos a
trocar ideias sobre a arte. A gente tinha um conceito geral que foi
amadurecendo ao longo do processo e também conversávamos sobre as cenas em
separado. O Felipe gosta de ouvir sugestões e está sempre incorporando ao
roteiro, até o momento que vamos para o set. Foi um processo muito desafiador e
estimulante, a gente estava sempre adicionando elementos, até o último dia de
filmagem. Apesar do Felipe já ter todo o filme na cabeça, ele vai criando,
mudando, se abrindo às ideias da equipe criativa ao longo do processo.
Definimos um conceito geral juntos e, a partir daí, apresentei para eles todas
as referências, paleta de cor e desenhos de cenários.
A direção de arte também
dialoga muito com a fotografia? De que forma?
Para mim, totalmente. Não tem
como ser diferente. Não sei pensar na arte sem pensar na luz e nos
enquadramentos. Principalmente por conta da minha experiência em shows, teatros
e cinemas. Se você faz um cenário para um palco e o iluminador coloca os refletores
e cores errados, aquilo pode interferir completamente no seu trabalho. O
fotógrafo/iluminador podem tanto valorizar o cenário como podem acabar com ele.
Acho imprescindível essa parceria, desde o início do processo. Em Não
Devore Meu Coração!, especialmente, eu escolhi todas as gelatinas das lâmpadas que iluminavam o cenário com o Glauco e o
Marcinho (gaffer do filme). A gente conversava sobre tudo. Era um filme em que
grande parte dos cenários eram concebidos a partir do conceito de iluminação
também. E eu adoro pensar a luz, estou sempre criando possibilidades para os
fotógrafos com tecidos, texturas, luminárias. Acho que tanto a arte quanto a
fotografia ganham quando trabalham em parceria.
Você vem de várias
experiências com cenografia no teatro e direção de arte no cinema. Quais são as
principais diferenças entre um e outro? E em que medida um também ajuda a
alimentar o outro?
O trabalho em cinema e no
teatro é totalmente diferente. A começar pelo espaço.
No teatro, a gente tem certeza de tudo que vai ser visto pelo público e como
vai ser visto. No cinema, nunca se sabe ao certo, é outro registro, é o olhar
do diretor, o enquadramento. A gente lida muito mais com a imprevisibilidade.
Normalmente os atores já entram no cenário para filmar, dificilmente temos
tempo hábil para mudar as coisas. No teatro, é tudo muito mais marcado,
ensaiado. Eu diria que é tudo mais controlado. Além disso, tem toda a questão
dos materiais, das cores. A escala da tela é
diferente da escala do palco. E no teatro a gente tem mais liberdade de criação
(não que isso seja melhor ou pior, só é diferente). O teatro tem o poder da
síntese, tudo pode ser muito mais abstrato, conceitual. Nada precisa ser o que
é. Mas claro que depende de cada diretor. No cinema, tive a sorte de trabalhar
com diretores bem diferentes e que ao mesmo tempo gostam de pensar a arte do
filme.
No caso de Não Devore Meu Coração!, quais foram
as grandes diferenças ou semelhanças em relação a outros filmes que você
trabalhou, como Mate-me Por Favor, da Anita Rocha da Silveira,
e Mormaço, da Marina Meliande?
Tanto o Felipe quanto a
Marina e a Anita, todos os três fizeram filmes muito fortes, todos têm um
conceito de arte importante. Não são filmes realistas. Mate-me Por
Favor foi o primeiro longa-metragem em que assinei direção de arte.
Foi um desafio maior, por ser o primeiro. A arte do filme era completamente
artificial. Era tudo roxo, rosa, azul. Eu não sabia no que ia dar aquilo. Mas
acho que tive a sorte de trabalhar com a Anita, que sabia muito bem o que ela
queria do filme. Éramos todos marinheiros de primeira viagem, toda a equipe
criativa. Foi bacana porque todo mundo se ajudou muito. E a gente conseguiu
criar um conceito forte, entre direção, arte, fotografia e figurino. O filme
ficou redondo. Eu não conseguiria listar as diferenças. Cada filme é um filme,
e a gente sempre aprende com o que passou. Acho que a maior semelhança entre
esses diretores é que eles me permitiram criar com liberdade. São diretores que
sabem o que querem, mas confiam no trabalho do diretor de arte. Então, uma vez
traçado o caminho, eles me deixaram seguir sozinha. E isso gera ainda mais
troca no trabalho.
(Produção de textos e entrevistas: Marcelo Miranda)
FICHA
TÉCNICA:
Direção
Felipe Bragança
Coprodução
Duas Mariola Filmes, Globo Filmes, Canal
Brasil, Revolver Amsterdam, Damned Films, Mutuca Filmes
Distribuição
Fênix Distribuidora de Filmes
Roteiro
Felipe Bragança
Direção
Felipe Bragança
Produtores
Marina Meliande, Marcos Prado
Coprodutores
Cauã Reymond, Mário Canivello, Raymond van der
Kaaij, Yohann Cornu, Dijana Olcay-Hot
Produtor Associado
Carlos Diegues
Produção Executiva
Eliane Ferreira e Marina Meliande
Direção de Fotografia
Glauco Firpo
Direção de Arte e Cenografia
Dina Salem Levy
Diretora de Produção
Chica Mendonça
Figurino
Ana Carolina Lopes
Caracterização e maquiagem
Tati Chaves
Montagem
Jon Kadocsa
Montagem Adicional
Felipe Bragança
Som Direto
Marcos Lopes
Microfonista
Ivan Lemos
Desenho e Edição de Som
Fernando Henna e Daniel Turini
Trilha Sonora Original
Baris Akardere
Mixagem de Som
Ranko Paukovic
Produção de Finalização
Manuelle Rosa
ELENCO:
Cauã Reymond
Fernando
Eduardo Macedo
Joca
Adeli Gonzales
Basano
Leopoldo Pacheco
César
Claudia Assunção
Joana
Marco Lóris
Telecath
Marcio Verón
Alberto
Zahy Guajajara
Lucía
Ney Matogrosso
Mago
REDES SOCIAIS
Instagram: instagram.com/fenixcine YouTube: youtube.com/comunicatucuman
Fonte:
Assessoria de Imprensa
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