Nada escapa ao poder inexorável do tempo.
Recentemente, li que Pedro Bandeira aceitou o desafio de adaptar a obra de
Monteiro Lobato. Alinhado às demandas do século XXI, parte da missão consiste
em eliminar as expressões racistas, atualizando os textos para jovens e
crianças contemporâneas. Os xingamentos que Emília proferia contra Tia
Anastácia não têm mais espaço nas novas edições da Editora Moderna, tampouco na
sociedade brasileira. Mas, a linguagem, a genialidade e o humor de Lobato serão
preservados. A movimentação editorial ocorre no momento em que a obra passa ao
domínio público, ou seja, os direitos autorais não pertencem mais
exclusivamente aos descendentes, 70 anos após a morte do escritor.
Como pai de quatro filhos e mestre em Educação pela
Universidade de Stanford, tenho acompanhado a polêmica em torno dessas novas
edições e do conteúdo da obra original. Em 2010, por exemplo, o Ministério da
Educação e Cultura (MEC) manteve a obra Caçadas de Pedrinho no
Programa Nacional Biblioteca da Escola, desde que houvesse a advertência de
condicionar o livro, no contexto de educação escolar, a professores com a
devida compreensão dos processos históricos que geram o racismo no Brasil. Cabe
ressaltar que a edição com uma adaptação crítica – similar à proposta de Pedro
Bandeira – não é exatamente uma novidade na literatura. O quadrinho “Tintim no
Congo” foi objeto de debates públicos na Europa e hoje conta com edições
revisadas que eliminaram os resquícios do colonialismo belga; antes, o conteúdo
era repleto de estereótipos e preconceitos contra os africanos.
Monteiro Lobato e Hegé (Georges Prosper Remi)
nasceram, respectivamente, em 1882 e 1907. São resultado de uma escola e de um
modelo de educação pertencente a um mundo muito diferente. E é esse ponto que
quero abordar. Da mesma forma como muitas pessoas (educadores, pais e autores)
resistem à revisão de obras literárias – feita com respeito e profissionalismo,
ressalto –, se opõem à atualização da forma como educamos nossas crianças e da
própria escola, que também tem sofrido o peso do tempo. Se nós, pais, já não
somos os mesmos... imagine os nossos filhos!
Como especialista em educação e empreendedor da
Geekie, tenho rodado o mundo, palestrando sobre o tema com um olhar muito
voltado para a escola brasileira e as referências educacionais no exterior. Na
edição de 2018 do Fórum Econômico Mundial para América Latina, cujo tema
transversal foi a Quarta Revolução Industrial– um momento no qual o
mundo está interconectado, mas a organização geopolítica e os problemas globais
não correspondem à forma como estamos organizados – a minha colaboração foi
levar o olhar da tecnologia e da inovação, dentro de um contexto
educacional real e prático. Quando se pensa que a escola atua com o desafio de
preparar o aluno para as competências do século XXI – mas, que ainda perpetua
um modelo de trabalho baseado nas habilidades necessárias na época da revolução
industrial – percebe-se que a proposta educacional adotada por grande parte das
escolas está distante de um modelo de trabalho e de vida em sociedade com
pensamento crítico, autonomia e visão de futuro.
No cerne do desafio de preparar os jovens para o
mercado de trabalho do futuro está a necessidade de questionar um sistema
educacional no qual as habilidades que ele se propõe a desenvolver –
basicamente, memorização e preparação para um exame vestibular – não têm nada a
ver com as habilidades e competências que o mercado de trabalho exige
(criatividade, pensamento crítico, trabalho em equipe e comunicação). Ou seja,
o oposto do que o modelo tradicional executa ao manter o aluno sentado em uma
carteira, em postura passiva, copiando textos e estudando sozinho para a prova.
Essa falta de sintonia entre a escola e educar para
o futuro está custando caro; nossos filhos estão abandonando a sala de aula. No
Brasil, de acordo com a PNAD, 50% dos jovens brasileiros não conseguem concluir
o Ensino Médio até os 19 anos. A necessidade de trabalhar, que pode vir à mente
como principal fator da evasão escolar, não é o primeiro motivo: 40% dos jovens
que abandonaram os estudos apontam o desinteresse – de acordo com a pesquisa da
Fundação Getulio Vargas.
O problema do acesso universal à uma educação de
qualidade não é só social, mas também é uma questão de competitividade! Se
o país não garantir que todas as pessoas que passam pelo sistema educacional
tenham capacidade de desenvolver plenamente o próprio potencial, corremos o
risco de deixar vários “Stephen Hawking” pelo caminho. Se o Brasil quiser ser
um país competitivo, precisamos que todas as crianças tenham uma educação de
qualidade. Temos que mudar, no mínimo, o Ensino Médio para aproximar essas duas
pontas; para que o dia a dia desse aluno na escola seja conectado com o que ele
vai ser demandado no mercado de trabalho. O primeiro passo da Base Nacional
Comum Curricular (BNCC) é direcionar o ensino para habilidades e competências,
mas para que isso aconteça há um longo caminho. E esse caminho tem muito a ver
com levar inovação, tecnologia, empreendedorismo e noção de cooperação
para dentro da sala de aula.
Hoje, a escola muitas vezes ainda está distante de
ser um ambiente de colaboração; o estudante por vezes está sozinho, o pai tem
que contratar professor particular para esclarecer dúvidas adicionais. O
professor também está em uma jornada solitária, dando aulas em várias escolas e
sem tempo de estabelecer vínculos; o coordenador vive uma rotina sobrecarregada
e de cobranças. Ou seja, cada um está imerso no próprio cotidiano, sendo que a
escola deveria ser por essência um lugar de colaboração e de
corresponsabilidade em prol de um objetivo maior – o desenvolvimento das
pessoas. Um lugar de encontro para alunos, pais, professores e coordenadores;
todos unidos em uma comunidade escolar de fato.
Óbvio que esse desafio de criar uma “nova edição
crítica da escola” passa por toda a comunidade escolar. Mas, acredito que passa
necessariamente pela coragem das famílias de exigir a transformação da escola;
passa por não ter medo da mudança e de lançar um olhar crítico para esse modelo
escolar que tem origem no século XII. E não se trata de jogar tudo fora, como
se nada fosse bom ou passível de edição. Estou falando de, como nas novas
edições de Monteiro Lobato, reconhecer a genialidade de conteúdos e transformar
o que não dialoga com o mundo atual. Essa é uma decisão urgente, pessoal e
intransferível. As famílias também precisam assumir o protagonismo na
transformação da escola.
Claudio Sassaki é
mestre em Educação pela Stanford University e cofundador da Geekie, empresa
referência em educação com apoio de inovação no Brasil e no mundo.
Fonte/Foto-reprodução/divulgação:
Assessoria de Imprensa
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