Tomar
o mundo trabalhando a partir dos próprios códigos de percepção e compreensão.
Apropriar-se dos códigos e linguagens que nos cercam e deslocá-los, até mesmo
subvertê-los, atribuindo a eles novas camadas de significados. Escrever sua
história de um modo um tanto particular, exigindo do outro um certo
estranhamento, um instante de suspensão para compreendê-la e interpretá-la.
Essas são algumas das características do trabalho da dupla Angela Detanico e Rafael Lain,
artistas que adotam a linguagem como tema e objeto de sua obra. O casal apresenta Meteorológica, mostra realizada no Espaço Cultural Porto Seguro, até 07 de abril, em São Paulo.
Com curadoria de Rodrigo Villela, a exposição apresenta ao público paulistano um conjunto de 14
trabalhos, a maior parte deles instalações inéditas, criadas a partir das mais
variadas linguagens artísticas. Vídeos, textos, animações, objetos, esculturas
e instalações se combinam, levando o visitante a refletir não apenas sobre temas
diversos, mas sobre o processo mesmo de reflexão e constituição do
conhecimento.
"Dotados de um formalismo rigoroso, a dupla Detanico Lain parte
de uma pesquisa de representação para a criação de uma linguagem ao mesmo tempo
rica de significados e repleta de poesia", afirma o curador. "Nesta
exposição, muitos dos trabalhos dialogam diretamente com o nosso espaço. O percurso, por si só, possui uma narrativa própria.
A mostra ganha corpo e reverbera na dimensão do
aqui e agora", completa.
Em uma área do Espaço Cultural Porto Seguro que
é ao mesmo tempo interna e externa, um trabalho site-specific já
enuncia a mostra da dupla e
instiga a curiosidade de quem passa pela rua. No corredor
envidraçado e panorâmico que conecta dois dos pavimentos do centro cultural, colunas de larguras diversas em vinil preto sucedem
umas às outras. A alternância entre transparência e opacidade traz ritmo à
entrada da luz no espaço e
também entre o dentro e o fora. As faixas de diferentes larguras são na verdade
um alfabeto criado pelos artistas e apresentam ao público o título da
exposição: Meteorológica.
"O nome da mostra vem de
um tratado homônimo de Aristóteles, em que o filósofo grego fala das coisas
físicas do mundo natural. São teorias criadas pela observação e descrição dos
fenômenos físicos, materiais, do planeta. Essa é uma ideia que permeia toda a
exposição", afirma Angela Detanico. "Nós
tentamos criar nessa mostra um microcosmo.
Nesse sentido, fazemos referência também ao Japão, adotando uma concepção
japonesa do jardim, marcado por um espaço reduzido,
mas que evoca a paisagem das montanhas, dos mares, do oceano", completa
Rafael Lain.
Logo na entrada principal do espaço expositivo,
sobre uma parede inclinada, a projeção de Cachoeira do céu (2018),
vídeo que parte do procedimento de "alongar" verticalmente os pixels
de uma fotografia digital do céu, desenhando sobre o suporte uma cachoeira de
luz. Em seguida, o visitante se depara com Da luz ao paraíso (2018),
escultura em aço patinável que traz um percurso gráfico entre os dois bairros
paulistanos, configurado conforme sua topografia e seguindo um trajeto afetivo,
opção de caminhada dos dois artistas, que já viveram em São Paulo, por lugares
de que gostam ou guardam na memória. À frente, Analema (2015)
poema escrito na forma de um calendário infinito, em que cada letra corresponde
a um dos 365 dias do ano. O percurso da escrita na parede remete à figura que
simboliza o infinito.
Na mesma sala, Ulysses (2017), uma
animação construída com o texto do romance homônimo de James Joyce. As palavras
se combinam e dão forma a uma silhueta humana, que parece caminhar, apesar de
estar fixa em um ponto único. A história avança a cada passo do personagem - a
sequência de passos revelando a sequência de frases. Uma jornada tal qual a de
Leopold Bloom, protagonista do autor irlandês, que ao longo de 18 horas
transita pelas ruas de Dublin de 1904.
No mezanino, Nuvens de
são paulo (2018), vídeo projetado em uma das paredes que traz um
poema de Memórias sentimentais de João Miramar, romance marco do
modernismo brasileiro, obra-prima de autoria de Oswald de Andrade. Com
diferentes graus de desfoque, as palavras flutuam no ar
e aos poucos esvanecem.
Ao seu lado, 28 luas (2014), vídeo
de 28 minutos que traz o ciclo de 28 dias da lua formado por frases do
livro Sidereus nuncius, livro do século XVII, de Galileu
Galilei. A obra é considerada o primeiro tratado científico baseado em
observações astronômicas realizadas com um telescópio, com uma descrição
minuciosa da superfície da lua. As frases aparecem e desaparecem em um
movimento de foco e desfoco, que recria a experiência da observação de um corpo
celeste através de uma luneta.
Sob os céus, o mar. Formada com minúsculos grãos de sal, a
instalação Onda (2010) apresenta a
própria palavra que lhe dá título por meio de um alfabeto criado pela dupla. De forma metalinguística, a nova linguagem é
caracterizada por ondas de diferentes comprimentos. No
sistema inventado pelos artistas, a letra A, por exemplo, é uma onda curta, um
pequeno suspiro. Já a letra Z, no fim do
alfabeto, é uma onda larga, mais longilínea. No caso
da obra, quatro curvas concretizam a palavra onda.
No subsolo do Espaço Cultural Porto Seguro,
o visitante se depara com Quadrado branco, traduções
visuais e em movimento de três poemas do japonês Kitasono Katue, um dos mais
importantes poetas de vanguarda do Japão – Espaço monótono,
Un autre poème e Gestalt do branco.
Mares da lua (2018) é uma
videoinstalação em que os nomes como Mar da Tranquilidade, Mar
da Chuva, Mar das Ilhas, e assim por diante, são projetados
sobre o chão. Os termos designam planícies basálticas que, vistas da terra,
formam manchas escuras na superfície da lua – onde, por algum tempo, pensou-se
que houvesse água. Como gotas, pequenos feixes de luz mancham o piso em
círculos de pedriscos brancos, que enunciam cada um dos "mares",
pouco a pouco, quase como um sussurro, ao mesmo tempo em que remetem aos
jardins japoneses da tradição zen budista.
Pintura mural sobre um fundo preto, Alguma coisa
está fora da ordem (2018) traz a frase que dá título à obra
escrita segundo o sistema "timezonetype". Criado em 1802 pelo
astrônomo e físico norte-americano Nathaniel Bowditch, o sistema associa uma
letra do alfabeto a cada uma das 24 divisões de fuso horário do globo. Na obra,
o resultado é um novo mapa-múndi, mescla de familiaridade e estranhamento com a
representação cartográfica do planeta Terra.
Não por acaso, logo ao lado, Ruído branco (2007),
vídeo apresentado por Detanico Lain na
Bienal de Veneza. A obra toma uma imagem fotográfica feita por satélite da
floresta amazônica, que vai sendo apagada gradualmente. Aos poucos, a mata é
tomada por pontos brancos, até desaparecer, ao mesmo tempo em que o aumenta o
"ruído branco" da instalação – termo usado para designar sons que o
ouvido humano não consegue distinguir como portadores de algum significado, ou
cuja fonte não pode ser identificada.
Na última sala da exposição são apresentados os principais
registros documentais da produção da dupla: vídeos
especialmente desenvolvidos para a exposição e catálogos das principais
exposições mundo afora, que acabam por dar a dimensão do trabalho, explorando
as relações artísticas do casal com o Brasil.
Por fim, já no pátio externo,
duas obras: Percurso (2018), escultura metálica
construída mais uma vez por um dos códigos concebidos pela dupla.
A palavra que a intitula ganha forma a partir de um sistema de equivalência
entre barras metálicas e a ordem alfabética. Na fachada do prédio, Entre
o ontem e o amanhã (2018) uma grande
instalação de neon que chama a atenção para seu traçado irregular: é o registro
gráfico, tridimensionalizado pela dupla, da linha de
fuso horário que determina a mudança de data no calendário,
passando de um determinado dia para o seguinte. No mesmo
mundo, na mesma hora, nesta linha imaginária é possível que o ontem conviva com
o amanhã.
Para Rodrigo Villela, curador da mostra,
"a poética da dupla se dá tanto pela
abordagem frontal como pelas temáticas contundentes – ao tratar de questões
universais de maneira tão peculiar, os artistas transformam conceitos muitas
vezes eruditos em obras de uma força visual potente, que dialogam com
diferentes tempos, geografias, histórias e literaturas. Vem daí muito da força
e do interesse que despertam", aponta.
SOBRE: A dupla
Angela Detanico e Rafael Lain trabalham juntos desde 1996. Semiologista e designer gráfico, nascidos respectivamente em 1974 e 1973, em Caxias do Sul (RS), moram e atuam em Paris. Seus trabalhos, em grande parte conceituais, mesclam gráficos, textos, sons e vídeos, quase sempre imbuídos de referências científicas, matemáticas e literárias.
"A gente só diz que um trabalho acontece quando os dois
se apropriam muito de determinado processo, e isso passa por diálogos e discussões
muito intensos. É uma pesquisa que nasce da curiosidade pelo mundo. Pesquisamos
para tentar dar conta do mundo em que a gente vive por meio da arte",
afirma Detanico. "Mesmo que seja uma prática
artística, o percurso é realmente filosófico", completa Lain.
Em 2002, a dupla participou
de uma residência artística na capital francesa, no Palais
de Tokyo. Dois anos depois, venceu o Nam June Paik, um dos mais prestigiados
prêmios internacionais. No mesmo ano, em 2004,
Angela e Rafael participam da Bienal de São Paulo, feito que se repete nas duas
edições seguintes, em 2006 e 2008. Nesse meio tempo, em 2007, representaram o
Brasil na 52ª Bienal de Arte de Veneza.
Ainda em Paris, a dupla deu
início a um projeto de colaboração com dois coreógrafos de Quioto, o que rendeu
ao casal algumas temporadas no Japão, e,
consequentemente, a participação em bienais e exposições pelo país asiático,
dotando-os de certa intimidade com a cultura japonesa, algo hoje refletido em
sua produção e, mais especificamente, na mostra Meteorológica.
"A exposição começou a ganhar forma depois de nossa
visita ao espaço. Os desníveis, que para muitos
poderiam soar como um desafio, nos permitiram diferentes pontos de vistas e
sugeriram uma topografia para a ideia que tínhamos em mente, a de construção de
uma paisagem artificial, da racionalização do ambiente natural, tal qual um
jardim japonês", afirma Lain.
No Brasil, o casal já participou
de uma série de exposições coletivas, a exemplo de Ready Made in
Brasil (2017), no Centro Cultural Fiesp, em São Paulo; e Manifesto Gráfico (2017), no próprio Espaço Cultural Porto Seguro.
Entre as individuais, uma série delas na Galeria Vermelho, que os representa;
e Alfabeto Infinito (2013), realizada na Fundação Iberê
Camargo, em Porto Alegre.
SERVIÇO
Meteorológica, mostra de Angela Detonico e Rafael Lain
Local: Espaço Cultural Porto Seguro
Endereço: Alameda Barão de Piracicaba, 610. Campos Elíseos – São Paulo
Período expositivo: de 19 de janeiro até 7 de abril
Visitação: de terça a sábado, das 10h às 19h; domingos e feriados, das 10h às 17h
Entrada gratuita
Capacidade: 305 pessoas
O edifício é acessível para pessoas com mobilidade reduzida. A exposição oferece atendimento especial na visitação com mediadores bilíngues em inglês, espanhol e libras mediante agendamento prévio.
Estacionamento
Alameda Barão de Piracicaba, 634 (sede Porto Seguro). De segunda a sexta-feira, gratuito pelo período de até
1h30 (1ª, 2ª e 3ª hora adicionais R$ 10,00 a hora. A partir da 4ª hora
adicional, R$ 5,00 a hora). A partir das 17h30 e aos sábados, domingos e
feriados - R$ 20,00 (preço único).
O Complexo Cultural Porto Seguro oferece vans gratuitas da Estação Luz até o Espaço Cultural Porto Seguro. Na Estação da Luz, o ponto de encontro das vans é na
saída da Rua José Paulino / Praça da Luz / Pinacoteca, em frente ao Parque
Jardim da Luz. Há instrutores no local para
orientar o embarque. Para mais informações, entre em contato pelo telefone (11)
3226-7361.
Terça a sábado das 9h à 0h. Domingo das 9h às 22h.
Aberto todos os dias: segunda, das 12h às 15h; terça, das 10h às 17h; quarta a
sexta, das 10h às 21h; sábado, das 11h às 18h; domingo, das 11h às 16h.
Site http://
Instagram @EspacoCulturalPortoSeguro
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