PROGRAMA DE APOIO À CULTURA DA JEEP DÁ FÔLEGO A GRUPOS CARNAVALESCOS TRADICIONAIS DE PERNAMBUCO - POR GISELE RIBEIRO


A jovem Rafaela Ribeiro tem 27 anos, três filhos e mora na praia de Carne de Vaca, uma localidade humilde no município de Goiana, na Zona da Mata Norte de Pernambuco, a cerca de 65 km do Recife. Ao lado da mãe, Iracema, ela lidera um grupo carnavalesco tradicional da região, a Nação Africana Pretinha do Congo de Carne de Vaca, as “Pretinhas”, criada em 1930 para mostrar à sociedade que havia uma comunidade negra na cidade.
Em 1935, o Pretinha foi assumido pelo estivador Antônio Manoel dos Santos, o “Pixirriu”, e se transformou em uma brincadeira tradicional do diverso Carnaval pernambucano. Quando Pixirriu morreu, a filha Maria do Carmo Monteiro, a “Dona Carminha”, então com 10 anos de idade, ficou à frente da agremiação. No sábado de Carnaval de 2014, dia da saída das pretinhas, Carminha faleceu, deixando a tarefa para a filha. A pedido da mãe e apesar da tristeza, Iracema levou os 35 integrantes do grupo para a rua naquele dia e, com a ajuda de Rafaela, continua com o legado até hoje.
No entanto, muito da história do grupo se perdeu com a morte de Dona Carminha. As músicas (loas) que faziam referência ao Congo, país de origem da maioria dos negros libertos que habitavam a região na época da criação do grupo, eram passadas oralmente. O mesmo com as danças e brincadeiras e até o porquê do vermelho, amarelo e preto serem as cores do grupo. Pixirriu era analfabeto, assim como Carminha e a filha Iracema. Não há registro escrito das canções (loas) ou das tradições do grupo. Cabe à Rafaela, que tem o sonho de ser médica, tentar colocar a história no papel.
“Eu não sei a história das loas nem como começaram as brincadeiras ou essa formação de desfile”, diz Rafaela. “Quem sabia era a minha avó, e a gente seguia o que ela falava”. Os poucos registros existentes sobre o grupo mostram que as Pretinhas eram formadas por crianças que mostravam como era a vida de seus avós e bisavós no tempo da escravidão. A formação das pretinhas para o desfile se parece com a do maracatu do baque virado: são duas fileiras de meninas, tendo ao centro dois vassalos que abrem espaço para o rei e a rainha. Fechando a formação está o porta-estandarte, trazendo no mastro o símbolo da agremiação.
O grupo segue as loas puxadas por Iracema, que, com seu apito, indica aos integrantes o que eles devem fazer. “Eu não me lembro de todas as loas, porque era a minha mãe quem cuidava das pretinhas”, conta Iracema. “No dia em que morreu, ela me fez prometer que eu nunca ia deixar as pretinhas dormirem”. No linguajar do carnaval pernambucano, dormir significa parar de desfilar. Iracema vem cumprindo a promessa. O Pretinha do Congo é a única agremiação que nunca deixou de sair no Carnaval em seus 90 anos de existência.
No entanto, as dificuldades financeiras ameaçam a continuidade do grupo, que precisa, além de novas roupas para os desfiles, se reestruturar e cumprir uma série de obrigações tributárias para poder participar do Carnaval de Recife e de outras municipalidades e receber um cachê. “Hoje, o que mantém esses blocos tradicionais são os editais das prefeituras, principalmente a de Recife”, explica o consultor cultural Osmar Barbalho, que atua na Zona da Mata Norte. “Mas para isso, os blocos precisam ter CNPJ, ter comprovação de emissão de notas fiscais, pagar impostos. Isso custa dinheiro, algo que as Pretinhas não têm”.
Para se ter uma ideia das dificuldades enfrentadas pelas Pretinhas, as roupas usadas nos desfiles são as mesmas há mais de cinco anos, e elas são passadas das mais velhas para as mais novas. Por não terem dinheiro para confeccionar outras, o grupo não recebe mais integrantes. Os ensaios acontecem somente nas semanas que antecedem o Carnaval, porque a agremiação não tem como arcar com transporte e alimentação dos que moram mais longe; mesmo motivo pelo qual as apresentações em outras cidades são recusadas.
Essa situação deve mudar com o apoio cultural da Jeep, montadora do Grupo FCA (Fiat Chrysler Automóveis), cujas instalações industriais ficam em Goiana. Desde 2018, a empresa vem apoiando o Carnaval de Pernambuco, principalmente o da Zona da Mata Norte. Este ano, a empresa decidiu investir no resgate histórico e na reestruturação da Nação Africana Pretinha do Congo de Carne de Vaca e apoiar outros 14 grupos carnavalescos dos municípios do entorno do Polo Industrial Jeep. Assim, cavalos marinhos, caboclinhos e tribos de índios da região terão, além de oficinas de estandarte e gaita, todo o apoio necessário para perpetuar a cultura regional. “É muito importante para a FCA estar inserida no tecido cultural, social e econômico das comunidades onde temos presença”, diz Fernão Silveira, diretor de comunicação corporativa e sustentabilidade da FCA para a América Latina. “No Brasil, especificamente, a nossa estratégia de responsabilidade social corporativa é muito baseada em educação e cultura, e, naturalmente, a cultura de Pernambuco é uma das mais ricas do país, especialmente a do Carnaval, que é muito diversa e tem muitos matizes.”
Instalada em Goiana desde 2015, a Jeep focou seus investimentos sociais nos três primeiros anos em educação, com projetos como o Rota do Saber e Vozes Daqui, voltados para a capacitação de professores e alunos e visando a melhoria da qualidade de ensino da rede pública. Em 2018, a empresa decidiu voltar sua atenção para as necessidades culturais das comunidades do entorno do Polo Industrial Jeep. “Depois de ouvirmos as pessoas nos vários municípios da região, entendemos que o Carnaval tem uma relevância muito grande na comunidade”, diz Fernão. “Há uma riqueza cultural originada em tradições de vários povos e que é passada de geração a geração, muitas vezes na base da oralidade, que precisa ser perpetuada.”
O apoio da Jeep ao Carnaval começou com o projeto “Goyanna Terra Indígena”, que beneficiou 15 agremiações dos municípios de Goiana, Itaquitinga e Itambé, preparando-as para o Carnaval de 2019. Com oficinas de estandartes e rodas de conversa com a comunidade, grupos escolares e formadores de opinião, o projeto durou 10 meses e mobilizou cerca de 3.000 pessoas ligadas à cultura popular da Zona da Mata Norte de Pernambuco, além de alunos da rede municipal de ensino de Goiana. De acordo com o consultor cultural Osmar Barbalho, responsável pelo projeto, promoção das oficinas de estandarte partiu de uma necessidade concreta dessas comunidades.
“As alegorias utilizadas pelos grupos que participaram do projeto estavam muito desgastadas e sem condições de uso”, conta Barbalho. “As técnicas que os brincantes usavam para produzir os estandartes não tinham durabilidade suficiente para suportar a brincadeira sob sol e chuva, e a confecção de novos, com material de qualidade à prova d’água, demandaria de cada agremiação entre R$ 5.000 e R$ 8.000 – um custo que nenhum dos grupos participantes do projeto teria como arcar.”
Identidade dos grupos, alma da agremiação, símbolo de uma nação. O estandarte conta a história da agremiação por meio de suas cores e de seus bordados feitos à mão e costuma ser a peça mais cara entre as alegorias. Sua durabilidade depende da qualidade dos materiais usados na base de tecido e da técnica de bordado. Com todo o material fornecido pela Jeep e sob a orientação de Manoelzinho Salustiano, mestre artesão de bordados, os grupos participantes – Pretinha do Congo entre eles – confeccionaram seus próprios estandartes.
As oficinas de mestre Salustiano foram pensadas para ajudar os grupos a superar as limitações financeiras, aproveitando as habilidades manuais de seus integrantes. “Ao mesmo tempo em que aprenderam, eles podem ensinar outros integrantes e até fazer disso uma fonte de renda nos próximos carnavais”, diz Salustiano.
Nesta segunda fase do projeto cultural da Jeep, a empresa vai promover novamente oficinas de gaitas e de estandartes, contemplando 14 agremiações dos municípios de Goiana, Itapissuma, Aliança, Tracunhaém, Itambé, Itaquitinga, Condado e Buenos Aires, que não participaram da primeira etapa. Principal instrumento nos Baques dos Caboclinhos e Tribos de Índios, as gaitas podem ser feitas de metal ou plástico. A confecção artesanal do instrumento musical vinha se perdendo no tempo, pois o conhecimento não foi passado para as novas gerações. Na primeira fase do projeto, a oficina capacitou os caboclinhos de Goiana. Em 2020, cerca de 30 jovens serão contemplados pela iniciativa, que terá uma turma avançada e uma de iniciantes.
Os mestres Tuti e Ailton, gaiteiros da cidade, que participaram da primeira edição, também serão os responsáveis pela oficina de gaitas deste ano. Tuti vai ensinar aos caboclinhos e às tribos de índio a confeccionar gaitas em PVS, a afinar os novos instrumentos e técnicas de dedilhar. Ailton vai ensinar as músicas e os diferentes ritmos. As oficinas terão duração de três meses.
Ao final do projeto, a FCA irá realizar uma exposição sobre a cultura popular da Zona da Mata Norte pernambucana na Casa Fiat de Cultura, em Belo Horizonte. “Vamos levar uma mostra da riqueza cultural de Pernambuco e unir com a cultura mineira, também popular”, finaliza Fernão Siqueira.
Agremiações típicas da Zona da Mata Norte

Costuma-se dizer que Pernambuco tem 10 letras e nenhuma se repete. A frase, segundo o consultor cultural Osmar Barbalho, ilustra bem a riqueza do Carnaval pernambucano. Na Zona da Mata Norte, há vários grupos carnavalescos representando a diversidade cultural da festa. Conheça algumas delas:

Tribos de Índios – Originária da Paraíba, a brincadeira é marcada pela musicalidade indígena, com temáticas ligadas a luta, guerra, morte e ressureição. Costuma ser confundida com os famosos caboclinhos. No ano passado, o Índios Orubá e o Índios Tabajara, ambos de goiana, foram campeão e vice-campeão, respectivamente, do Grupo Especial Tribo de Índios do Concurso das Agremiações Carnavalescas do Recife.

Caboclinhos – Brincadeira popular originária das culturas indígenas e que expressam forte sentimento nativista. Homens, mulheres e crianças apresentam coreografias vigorosas em ritmo vibrante marcado pelo estalido das preacas, espécie de arco-e-flecha de madeira. Os baques, ou ternos, é como se chamam os grupos musicais que compõem os caboclinhos. Os conjuntos são formados por homens, que tocam instrumentos tradicionais como gaita, maraca, surdo, caixa e, em alguns casos, atabaque. Alguns deles também contam com um puxador que entoa alguns cantos que remetem à Jurema Sagrada, religião afroindígena.

O grupo Caboclinhos União Sete Flexas de Goiana, com cerca de 150 integrantes, foi o campeão do Grupo Especial Caboclinhos do Concurso das Agremiações Carnavalescas do Recife em 2019. A agremiação é a única a ter uma mulher como presidente, Geo, filha mais nova do fundador do grupo, Nélson Cândido Ferreira, o mestre Nelson, falecido em novembro passado.
Maracatu de Baque Solto – Expressão da cultura afro-indígena da Mata Norte pernambucana, a brincadeira evidencia a fusão de vários folguedos populares existentes nas áreas canavieiras, como reisado, pastoril, cavalo marinho, bumba meu boi e caboclinhos.

Pretinhas do Congo – Manifestação cultural única da Zona da Mata Norte. A brincadeira mostra como era a vida no tempo da escravidão, celebrando as lembranças dos antepassados. É uma tradição exclusiva do município de Goiana e desfila o Carnaval para lembrar que a riqueza da terra tem sido construída pelos mais pobres.

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